HISTÓRIA DO BRASIL - ANO MMXXIII DO QUADRIÊNIO DA ESPERANÇA: REFORMA TRIBUTÁRIA - lll
Renda com lucros e dividendos tem recorde de R$ 556 bi e
eleva concentração nos mais ricos
Valores são isentos do Imposto de Renda e estão na mira de
Haddad, que planeja retomar taxação
Na
mira do governo por serem isentos do IRPF (Imposto
de Renda da Pessoa Física), os rendimentos
declarados por indivíduos brasileiros com lucros e dividendos alcançaram
o recorde de R$ 555,7 bilhões em 2021 e se concentraram ainda mais no topo,
isto é, entre os mais ricos.
O
valor é 44,6% maior do que em 2020, quando essa fonte de renda se manteve em
alta a despeito dos efeitos negativos da pandemia de Covid-19 e somou
R$ 384,3 bilhões. O aumento expressivo supera com folga a inflação de 2021,
que foi de 10,06%.
A
cada R$ 100 declarados como lucros e dividendos, R$ 74 ficaram nas mãos do 1%
mais rico —um seleto grupo formado por 359,9 mil brasileiros que informaram
à Receita
Federal rendimentos totais entre R$ 658,4 mil e R$ 22,5 bilhões no ano
de 2021.
Trata-se
de uma concentração ainda maior do que a observada em anos anteriores, quando o
topo da pirâmide ficava com até 70% desses rendimentos —uma fatia já
considerável e sempre apontada por especialistas como uma evidência
da desigualdade de renda no país e das distorções
no sistema tributário.
Ao
todo, o 1% mais rico arrecadou R$ 411,9 bilhões dos lucros e dividendos
reportados ao Fisco para o ano de 2021. A cifra é mais de duas vezes o
orçamento atual do programa Bolsa Família (R$ 173,4 bilhões).
Os
dados foram compilados pela Folha a partir dos grandes números das
declarações do IRPF de 2022, feitas com base nos rendimentos de 2021. A
publicação das informações é feita anualmente pela Receita
Federal.
Especialistas
afirmam que a alta significativa dos valores pode ter sido consequência do
projeto de lei 2.337/2021, que previa
a retomada da tributação sobre lucros e dividendos distribuídos à
pessoa física. A proposta, enviada no governo Jair
Bolsonaro (PL), chegou a ser aprovada na Câmara dos Deputados com uma
alíquota de 15%, mas não avançou no Senado.
"Todas
as empresas que tinham dividendos carregados [de outros exercícios] ou
acumulados distribuíram para evitar a tributação. Isso criou um fator atípico",
afirma o economista e pesquisador Sérgio Gobetti, especialista na área
tributária e que hoje atua na secretaria de Fazenda do Rio Grande do Sul.
Também
contribui o fato de a Petrobras, uma das maiores companhias do país, ter
distribuído R$ 101,4 bilhões em dividendos a seus acionistas, referentes ao
desempenho da empresa no ano de 2021 —quando a cotação do petróleo e do dólar,
a alta nas vendas e a ampliação das margens de lucro impulsionaram o resultado
da petrolífera.
Os
dados obtidos nas declarações do IRPF não refletem sozinhos o panorama integral
da distribuição de renda no país, uma vez que apenas 36 milhões de brasileiros
prestaram contas à Receita Federal. Mas as informações são um termômetro
relevante para identificar o que aconteceu com os rendimentos da população no
ano de 2021.
O
diagnóstico mostra maior resiliência dos lucros e dividendos, num momento em
que os trabalhadores ainda sofriam no bolso as consequências da pandemia. O
rendimento médio mensal do trabalho caiu de R$ 2.638 em 2020 para R$ 2.476 em
2021 —uma queda real de 6,1%, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística).
Enquanto
isso, segundo a Receita Federal, o rendimento médio do 1% mais rico,
considerando todas as fontes, subiu 27,7% em termos nominais, passando de R$
1,8 milhão em 2020 para R$ 2,3 milhões em 2021. A alta supera a inflação,
indicando ganho real para esse grupo, boa parte explicado pela ampliação nos
lucros e dividendos.
A
renda dos assalariados é tributada em até 27,5%, de acordo com a tabela do
IRPF. Já os ganhos da pessoa física com lucros e dividendos são totalmente
livres do Imposto de Renda.
As
informações da Receita permitem saber também quanto desses rendimentos isentos
estão nas mãos de estratos ainda mais abastados.
O
0,1% mais rico, que reúne 36 mil contribuintes com ganhos acima de R$ 3,42
milhões, concentrou R$ 251,4 bilhões dos lucros e dividendos recebidos em 2021.
Já
o 0,01% mais rico, um grupo restrito de 3.599 contribuintes com renda entre R$
20 milhões e R$ 22,5 bilhões, responde por R$ 117,5 bilhões dessas receitas
informadas no ano.
Os
lucros e dividendos eram tributados no Brasil até 1995, mas uma lei sancionada
pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) isentou esses
rendimentos a partir de 1996. Desde então, tentativas de retomar a taxação
esbarraram nas resistências do andar de cima.
A
volta da tributação está nos planos do governo Luiz Inácio Lula da
Silva (PT). Em entrevista recente à Folha, o ministro Fernando
Haddad (Fazenda) disse que vai discutir
o tema com cautela para não sobrecarregar empresas nem afetar
negativamente a classe média.
Ao
tributar lucros e dividendos distribuídos à pessoa física, técnicos do governo
avaliam ser necessário reduzir as alíquotas incidentes hoje sobre o resultado
das empresas, para evitar uma carga muito elevada e, ao mesmo tempo, incentivar
maior retenção desses valores para a realização de investimentos.
O
fim da isenção tem o apoio de especialistas. "Não tem absolutamente nada
mais importante a ser feito do que retomar os impostos sobre lucros e
dividendos. Para mim, isso deveria ser a prioridade número um. É a única coisa
de impacto grande de arrecadação, e que tem um papel progressivo muito grande",
diz Luiza Nassif, pesquisadora do Made/USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia
das Desigualdades, da Universidade de São Paulo).
Ela
destaca que a ausência da cobrança tem repercussões fiscais e sociais. Do lado
das contas públicas, é como se fosse um gasto tributário —como são chamados os
benefícios fiscais concedidos a setores ou atividades. Nassif calcula que uma
alíquota de 15% sobre os lucros e dividendos poderia ampliar a arrecadação em
até R$ 80 bilhões, dos quais R$ 60 bilhões vindos apenas do 1% mais rico.
No
contexto social, segundo ela, a isenção de
lucros e dividendos é um dos principais fatores de desigualdade racial na
tributação. Como mostrou a Folha, uma nota elaborada pelo Made/USP mostrou
que o benefício reduz a alíquota efetiva do Imposto de Renda do 1% mais rico a
8,8% para homens brancos, enquanto a de homens negros nesse mesmo estrato (em
geral servidores públicos com maiores salários) fica em 13,14%.
"A
incapacidade de se retomar isso [tributação] é indicativo de uma permanência
institucional de um racismo estrutural", avalia a pesquisadora.
Os
dados da Receita Federal sobre lucros e dividendos não consideram os
rendimentos de sócios de micro e pequenas empresas optantes do Simples
Nacional, que abarca companhias com faturamento de até R$ 4,8 milhões ao ano.
Essa fonte de renda também pode ser classificada como um tipo de lucro ou
dividendo e é igualmente isenta do IR.
Em
2021, esses pagamentos somaram R$ 175,6 bilhões, alta de 35,9% em relação aos
R$ 129,2 bilhões declarados em 2020. Neste caso, o topo da pirâmide (1% mais
rico) ficou com R$ 42,7 bilhões, cerca de um quarto dos rendimentos dessa
fonte.
Publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo